segunda-feira, 22 de março de 2010

Cabo Verde: a fragilidade de um paraíso

Um governante prometeu que faria destas ilhas secas «o Japão do Atlântico»; mais recentemente, um alto responsável considerou Cabo Verde «o farol de Àfrica».

A basofaria do cabo-verdiano é, como se sabe, um mecanismo de auto-compensação. Vai daí, exageramos: mau grado a miséria ostensiva (jovens a vasculhar lixo)  e a insegurança crescente (tendência para um homicídio por semana na Cidade-Capital), não hesitamos em proclamar que vivemos num «paraíso».

De há uns anos para cá, vimos propalando sucesso por esse mundo fora, mas a profunda desigualdade social, a pobreza extrema e o elevado nível de desemprego existentes dizem-nos coisa muito diferente: 35 anos depois da proclamação da independência, Cabo Verde permanece muito dependente do exterior e pobre. Apesar dos avanços registados, o país tem um futuro incerto..e a miséria atrás da esquina.

Um sucesso relativo com futuro em risco

No ano do seu 35º aniversário como República, Cabo Verde tem, naturalmente, motivos para celebrar.

Recuamos aos anos noventa para assinalar a Constituição da República, a nossa eleição para o Conselho de Segurança das Nações Unidas e a assinatura do Acordo Cambial com o escudo português. Hoje o país é membro da Organização Mundial do Comércio, acordámos uma parceria especial com a União Europeia e somos financiados pelo Millenium Challenge Account (MCA).

Notável. Para além disso, a NATO realizou no nosso país um exercício com 6 mil homens (Junho de 2006) e a ONU promoveu-nos a País de Desenvolvimento Médio (PDM). Simplesmente espectacular, para um pequeno estado de 500 mil habitantes.

Convém, contudo, relativizar.

Da parceria especial se sabe que está fora de questão a nossa entrada para União Europeia. Somos chamados a contribuir para a segurança internacional e enquanto mantivermos acordos de patrulhamento internacional conjunto e caminharmos no sentido de uma cooperação estreita com a NATO e com as polícias europeias, temos a nossa parte cumprida, no essencial. O acesso especial a fundos europeus para a Macaronésia e a livre circulação para os nossos passaportes, são as contrapartidas da União Europeia, a que, negociando bem, poderemos vir a ter direito.

Do MCA se sabe que mais do que um prémio à boa governança e ao bom governo, trata-se de um instrumento estratégico dos Estados Unidos para a penetração em zonas de interesse. Sentimo-nos eufóricos, com alguma razão, uma vez que os montantes disponibilizados superam as contribuições da União Europeia. Mas a Mauritânia recebeu quatro vezes mais e não se pode dizer que seja um grande exemplo de boa governança.

A ONU transformou-nos em PDM ou, mais correctamente, em País de Rendimento Médio; mas fê-lo contra a nossa vontade expressa. Com base na gestão da ajuda externa e num esforço de crescimento económico, atingimos dois critérios de transição para PDM: o per capita e o índice de desenvolvimento humano; mas não atingimos o critério da vulnerabilidade económica. E assim, com um índice de vulnerabilidade económica 30% abaixo do limiar requerido, fomos promovidos sem mérito absoluto.

O nosso rendimento per capita ultrapassa os 3.400 dólares (INE), mas cerca de 40% da população vive abaixo do limiar da pobreza (idem). Apresentamos um índice de desenvolvimento humano assinalável, mas a desigualdade social é profunda: apenas 1% da população concentra em si 47% da despesa per capita.

Temos uma esperança de vida de 67 anos para o homem e 75 para a mulher; mas a nossa dívida externa equivale a mais de 50% do PIB (55% em 2002); e o nosso PIB depende de transferências dos nossos emigrantes, que tendem a diminuir: 16% do PIB em 1995, 10% em 2004.
Produzimos sómente 10% dos cereais de que necessitamos e as exportações cobrem apenas 6% das importações.

A instabilidade da produção agrícola coloca Cabo Verde num angustiante 1º lugar, isto é a pior posição, de entre um total de 128 países. Por causas naturais a nossa área cultivável é inferior a 10%.; mas essa área vem diminuindo por obra das próprias populações que, com espantosa irracionalidade, vêm retirando areia das praias, salinizando as terras agrícolas próximas do mar.

Quanto à taxa de crescimento, afora os 10% de 2006, resultantes do exercício da NATO, a nossa taxa média anual situa-se abaixo dos 6%, número próximo dos 5,2% registados, de 1980 a 1990 (Michel Lesourd).Nos anos 2003 e 2004 registámos taxas inferiores à média dos anos oitenta (4,7 e 4,4%, respectivamente, fontes oficiais); e para 2008/2009, anos de incidência de uma grave crise mundial, há quem estime o regresso aos 4%.

Quando ouvimos que Cabo Verde pode ser equiparado a este ou aquele país, mais desenvolvido, ficamos impressionados com o excesso de entusiasmo. A verdade é que somos um país altamente dependente da ajuda externa. Os investimentos no país são financiados em 80 a 90% por recursos externos, dos quais 40% são empréstimos.

À luz dos números, não se pode imaginar Cabo Verde como farol de Africa. Vimos formando licenciados que não encontram emprego (centenas, segundo tese de mestrado); temos dezenas de milhares de jovens no desemprego, mas falta-nos mão-de-obra qualificada para sectores-chave como o turismo, a construção civil e as comunicações.

A fragilidade deste nosso “paraíso” é consequência de factores naturais, mas também da má governação.Fazemos uma aposta  quase exclusiva no sector terciário e olhamos com alguma displicência para o sector primário que é onde se concentra o maior número de pobres: a população rural comporta mais de 60% dos 173 mil pobres do país. Atribuímos ao turismo o papel de motor da economia, mas descuramos o abastecimento dos hotéis, com produção agrícola interna ( deixando sem soluções consistentes a qualificação dos produtos e os transportes marítimos).


Temos um êxodo rural crescente e uma urbanização descontrolada. A população da Praia aumentou 82% de 1980 a 2000 e 125% de 1990 a 2005!. As oportunidades concentram-se cada vez mais nos centros urbanos e afuniladamente na capital do país, agravando-se deste modo os desequilibrios regionais e potenciando a pressão social sobre os fracos recursos.

Temos um desemprego elevado:17% segundo o Governo (24% em 2005) e a rondar os 30% segundo a oposição; o sub-emprego chega a aproximar-se dos 70% (2002, Michel Lesourd) e a criminalidade aumenta 5,7% ao ano (Site do Governo).

Criminalidade e desestruturação da família

A criminalidade cresce em gravidade, sendo hoje conhecida a existência de gangues que disputam bairros e assassinos profissionais que executam contratos. Mau grado algum aumento de eficácia do sistema de segurança, a situação piora. Comparando 1996 e 2006, o número de crimes registados aumentou 77% ( site do Governo).

Investimos no ensino e na formação profissional, mas o abandono escolar aumenta (no EBI 6,4% em 1990 e 7% em 2003; nos liceus, de 4,4% em 2000 para 16% em 2003).Apesar das boas intenções, a escola torna-se cada vez mais desinteressante.Uma das causas do abandono escolar é o trabalho infantil. Rapazes e raparigas são obrigados pela família a acumular actividades escolares à tarde, com trabalho infantil de manhã (fonte REJOP, 2009) e segundo um conhecido antropólogo, 40% das crianças que trabalham acabam por abandonar a escola.

Pode-se explicar o avanço da criminalidade com a penetração do crime internacional organizado, nomeadamente, do tráfico de droga; mas um factor decisivo vem sendo ignorado: a desestruturação da família e a sua relação com o número cescente de jovens em conflito com a lei.

Em estudo realizado junto de jovens em conflito com a lei, 70% dos inquiridos revelaram ser oriundos de famílias desestruturadas (Min.Justiça).Somos um país em que 44% dos agregados familiares não têm uma figura paterna presente; e 36% dos agregados familiares chefiados por mulheres vivem abaixo do limiar da pobreza.

Os nossos “thugs” começaram por ser relacionados com alguma forma de revolta face à miséria e à desigualdade social e de auto afirmação (vagamente orientada pelo “thug live code” de Tupac Shakur); mas hoje em dia eles são fundamentalmente conectados com assaltos à mão armada, venda de droga, receptação de produtos roubados, contrabando de armas e vendetas.E o sensacionalismo dos media não distingue o “thug” que não é bandido, nem o bandido que não é “thug”, o que acaba por agravar o quadro percetível.

A criminalidade vem sendo analizada de modo tendencialmente integrado, mas sem que a desestruturação da família seja claramente discutida como factor potenciador da delinquência juvenil. Em matéria de família, opta-se por uma abordagem assistencialista às mulheres-chefes de família e pela tese do machismo omnipresente e que tudo explica(tese esta que, em última análise, é ela própria uma forma encoberta de machismo, pois que menoriza a mulher, acabando por ignorar as opções conscientes, certas ou erradas, da própria mulher).

O actual Governo tem mais ministras do que ministros. Trata-se de um indicador interessante; mas mais do que de um record mundial de mulheres no Governo, o país precisa de políticas que protejam a família nuclear, universalizem a educação e a qualificação profissional das raparigas, combatam o trabalho infantil e a prostituição e desencorajam fórmulas degradantes de ascensão social da mulher.

Ainda com relação aos “thugs”, espanta como gente responsável insiste  em instrumentalizar ou em desvalorizar a imagem de Amilcar Cabral, retirando à juventude referências próximas em que se inspirar.E depois lamentamos que a nossa juventude se reveja em rappers famosos, oriundos do mundo do crime ou em gente nossa que exibe viaturas topo de gama, de proveniência duvidosa.

Hoje mais do que nunca, a fragilidade do nosso “paraíso” interpela a sociedade e em particular a classe política.

Espera-se dos partidos que sejam capazes de apresentar soluções realistas, consistentes e sustentáveis, para os graves problemas do país, nomeadamente, a pobreza e o desemprego. Face aos constrangimentos crescentes da nossa economia, importa ter em conta a realidade específica da nossa terra e reconhecer o muito que há por fazer.

O país precisa de um discurso político que ponha de lado a auto-louvação, a fuga em frente e as propostas destinadas a iludir o eleitorado.Sob pena de, ignorando o agravamento crescente dos nossos problemas, acordarmos um dia num país inseguro.