sexta-feira, 17 de abril de 2009

Guiné-Bissau: a caminho da estabilidade

“A Guiné-Bissau é um estado falhado”. “Justifica-se, com urgência, uma intervenção militar estrangeira”. Estas teses vêm sendo defendidas por algumas entidades e, no essencial, traduzem a impaciência da comunidade internacional, face à violência recorrente, no país. Mas em boa verdade, elas têm pouca razão de ser.

Um “estado falhado” não teria realizado como realizou as últimas eleições legislativas, de Novembro de 2008. Essas eleições decorreram em clima de calma, tiveram uma participação de 82% do eleitorado—a mais elevada de sempre e foram consideradas um bom exemplo para o continente africano (ver
http://www.crisisgroup.org/).
Uma intervenção militar ocorre em casos extremos. Segundo o artigo 25º do Protocolo aplicável da CEDEAO, (cfr
http://www.ecowacs.org/) uma intervenção militar, no território de um membro, pode ter lugar em casos de agressão, conflitos entre dois estados membros, ameaça de desastre humanitário, violação massiva dos direitos humanos ou derrube de um governo democráticamente eleito.Nada que se aplique à situação vivida na Guiné Bissau. Já a União Africana, no artigo 4º do Protocolo aplicável (cfr http://www.aficanunion.org/) prevê o direito de intervenção num estado membro, em caso de crimes de guerra, genocídio ou crimes contra a humanidade. Mas, mais uma vez, não se está perante um dispositivo que abrange o que se passa na Guiné Bissau.
Por conseguinte, não haverá, no futuro imediato, uma intervenção militar, a não ser que, por razões que não descortinamos, venha a ser discutida uma solicitação expressa do poder guineense. Uma questão diferente é o envio de especialistas militares para apoiar o processo de reforma das Forças Armadas. Isso vem acontecendo normalmente, no quadro da cooperação bilateral e poderá ser incrementado no futuro próximo, assim as autoridades guineenses o entendam.

MAIORIA HISTÓRICA E ESTABILIDADE GOVERNATIVA
Mau grado a natureza extrema dos últimos actos de violência, há razões para acreditar que a Guiné-Bissau está a caminho da estabilidade. Pela primeira vez desde que a Guiné-Bissau adoptou o sistema multipartidário, em 1994, um partido detém uma maioria parlamentar de mais de 2/3 dos lugares: 67 em 100 (contra 62 em 100, do PAIGC de Nino Vieira, em 1994). O partido vencedor, o PAIGC de Carlos Gomes Junior, está, deste modo, em condições de aprovar todas as medidas legislativas que achar por bem; e pode, inclusive, mudar a Constituição, alterando o regime.
Segundo analistas, o povo votou fundamentalmente no líder do PAIGC, Carlos Gomes Júnior.Tratou-se de um voto baseado em critérios de competência, em substituição da tradicional “legitimidade histórica”.Carlos Gomes Júnior trabalhou nas finanças do Estado e no Banco Central e provou a sua competência nos 17 meses em que foi Primeiro-ministro, antes das presidênciais de 2005. Conseguiu assegurar o pagamento dos salários da função pública (tarefa complexa no país) e reactivar as relações com o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional, postas em causa pela presidência de Kumba Yalá (2003-2005). Esta votação foi aliás protagonizada por uma nova geração de eleitores, pouco impressionados com a legitimidade histórica de políticos, oriundos da luta armada. Cerca de 40% dos eleitores tinham entre 18 e 30 anos, isto é, adquiriram capacidade eleitoral no meio de uma atribulada “segunda gestão Nino Vieira”, (ano 2005 e seguintes), ou acompanharam, frustrados, as várias crises da “primeira gestão Nino Vieira”, (1980-1999).
No cenário de desejada estabilidade, resultante das legislativas, são assassinados o Presidente Nino Vieira e o General Tagme Na Waye e é agredido o antigo Primeiro-ministro, Francisco Fadul. Estes acontecimentos configuram crimes que devem ser investigados pelas entidades competentes. Podem justificar ajuda técnica estrangeira nas investigações, desde que solicitada; mas não são razão suficiente para uma força militar multinacional.
O Governo de Carlos Gomes Júnior tem, óbviamente, tarefas difíceis a enfrentar. No imediato, deverá mobilizar, junto da comunidade internacional, cerca de 173 milhões de euros para cobrir o déficit de 81% do Orçamento do Estado, aprovado recentemente; e ainda 3 milhões de euros, para custear as legislações presidenciais antecipadas, de 28 de Junho, próximo. O Orçamento aprovado visa satisfazer duas necessidades vitais, para a estabilidade: o pagamento dos salários da função pública e o pagamento dos salários dos militares. De recordar que, à data das eleições legislativas de Novembro transacto, os trabalhadores da função pública tinham vários meses de salário em atraso. Ainda no imediato, Carlos Gomes Júnior deve enfrentar um imperativo incontornável: o diálogo para a reconciliação. Terá de dialogar com os militares, com as diferentes facções internas do PAIGC, com todos os partidos da oposição e com a sociedade civil, incluindo, os sindicatos, a classe empresarial, os líderes religiosos, os líderes locais, etc (cfr. Princípios operacionais do processo de paz in
http://www.wanep.org/”). Uma atenção especial deverá ser dedicada ao diálogo com a comunidade internacional, com destaque para os principais doadores (União Europeia, BAD,Banco Mundial e FMI) mas também com atenção particular a interlocutores bilaterais como a Espanha, os Estados Unidos e a Itália, assim como para os gestos de solidariedade cada vez mais consistentes do Basil, de Angola e da Nigéria.Nessa linha de raciocínio um papel especial caberá ao Fundo de Consolidação da Paz, constituído pelas Nações Unidas e ao Grupo Internacional de Contacto-GB, que, de modo inovador, conseguiu estabelecer um mecanismo de concertação regular entre a CPLP e a CEDEAO.
No curto prazo, o Governo enfrenta desafios altamente complexos: a reforma das Forças Armadas e o combate ao narcotráfico.

PENSÕES DIGNAS E SUSTENTÁVEIS PARA MILITARES
Na mesa-redonda de Genebra, em 2006, o Governo apresentou aos doadores um Plano de Reforma do Sector de Defesa e Segurança, orçado em 184 milhões de dólares. Os doadores preferiram adiar a ajuda. E a recente mesa-redonda da Praia (20/21 de Abril ), sobre o mesmo Plano, não acertou montantes de ajuda.
Feito um primeiro recenseamento dos militares (uma condição prévia para o financiamento da reforma do sector), ficou-se a saber que as Forças Armadas da Guiné-Bissau apresentam um total de 4500 efectivos, 80% dos quais são graduados (oficiais e sargentos). A tarefa primeira que se impõe é, por conseguinte, promover a passagem gradual e voluntária de cerca de 2/3 dos graduados à situação de reforma e, com recurso ao Serviço Militar Obrigatório, restabelecer-se a estrutura hierárquica normal.
A passagem dos militares à reforma é uma tarefa que exige sustentabilidade financeira.Os militares aceitarão a reforma, desde que se estabeleçam pensões dignas e se garanta a regularidade do pagamento dessas mesmas pensões, para um período de 5 a 10 anos. De notar que por acção da Nigéria, que cedeu 2 milhões de dólares e do Brasil, que disponibilizou apoio técnico, foi lançado um projecto-piloto de formação profissional de militares, orientada para a geração de rendimentos. Mas ciente de que a questão central é a sustentabilidade das pensões, a CPLP vem propondo a criação de um Fundo Internacional para Pensões de Reforma (cfr. Declaração Final da Reunião de Ministros da Praia, de Março último).
Outra medida importante é a adopção de legislação que fixe o período de serviço militar em 14 a 18 meses, redefina o total dos efectivos globais, estabeleça normas de progressão na carreira, introduza remunerações atraentes para os postos do Quadro Permanente e reoriente a actividade das Forças Armadas. O Serviço Militar Obrigatório é importante para a normalização da estrutura, mas também para a diversificação étnica dos efectivos. Quanto ao total dos efectivos globais, ele deve ser estabelecido de modo a assegurar um mínimo credível de capacidade de defesa, assim como uma capacidade operacional de luta contra o narcotráfico. Nesse sentido, as taxas para o cálculo dos efectivos globais (militares por habitante ou por km2) devem ser aquelas que forem consideradas necessárias aos objectivos estratégicos do país;elas não devem ser subordinadas às taxas dos vizinhos que, convém não ignorar, invadiram a Guiné-Bissau em 1998/1999.
A reorientação das Forças Armadas deve ser tarefa central da reforma da instituição; e a luta contra o narcotráfico será, seguramente, uma das missões principais das novas unidades militares. Caberá às Forças Armadas, resultantes do processo de reforma, assegurarem, em permanente coordenação com as Polícias, o patrulhamento sistemático das 40 ilhas dos Bijagós, das 26 pistas de aviação, dos 4 portos e gares marítimas, dos dois aeroportos e da enorme extensão das fronteiras terrestres; missão complexa-quiçá "sui generis"-que exige efectivos militares qualificados, bem equipados e suficientemente motivados.

PATRULHAMENTO MARÍTIMO CONJUNTO COM PAÍSES DA NATO
Na Conferência de Lisboa, em fins de 2008, foi apresentado aos doadores um Plano Operacional de Combate ao Narcotráfico, orçado em mais de 19 milhões de dólares. Mas os doadores concederam apenas 6.7 milhões, isto é, cerca de 30% do montante.Conclui-se que, por alguma razão, o texto não terá merecido suficiente adesão.
Este Plano Operacional suscita, na verdade, algumas dúvidas. Desde logo pelo seu carácter demasiado circunscrito, em contraste com o elevado montante solicitado. A luta contra o narcotráfico terá melhor sucesso no quadro de uma estratégia integrada que inclua, não apenas o narcotráfico, mas todas as formas de crime organizado, existentes no país. E a implementação de uma tal estratégia não deve estar dissociada de actividades convergentes, de nível sub-regional. Conviria adoptar-se um Programa Integrado de Luta Contra o Narcotráfico e o Crime Organizado, que inclua projectos contra o tráfico de armas, a criminalidade violenta e a lavagem de capitais, sem excluir medidas contra o terrorismo, que, como se sabe, beneficia de financiamentos oriundos do narcotráfico.
No teatro operacional, o vazio é normalmente ocupado. Daí que faz pouco sentido concentrar actividades em “países-piloto”; importa, pelo contrário, adoptar-se um Plano sub-regional, (emanado do Plano da CEDEAO), que inclua também o Senegal (responsável em 2007 pela maior parte da cocaína apreendida). Este plano sub-regional deve constituir-se em Anexo do Plano Integrado, nacional.
A Guiné-Bissau pode tirar proveito da experiência de patrulhamento marítimo conjunto, que envolve meios miltares de Cabo Verde e de países da NATO e destina-se a reduzir o tráfico de cocaína, proveniente da América do Sul. Este patrulhamento conjunto é considerado, pelos analistas, a principal medida de combate ao narcotráfico na sub-região e deve ser estabelecido como elemento base do Programa Integrado.
De realçar que a Guiné-Bissau vem ganhando valor estratégico. A acrescentar às reservas de bauxite, junta-se agora o petróleo; e no ano passado o país foi refúgio de terroristas islâmicos, provenientes da Mauritânia. Nesse quadro, surge a visita recente da Comandante Adjunta do Africom (Comando Africano para a África, sediado nos Açores), um dado importante a ter em conta.
Recomenda-se ainda uma assistência técnica internacional melhor direccionada e mais coordenada, de preferência na modalidade “One UN”. A assistência das Nações Unidas, em matéria de narcotráfico e crime organizado, deve confinar-se ao mandato: a divulgação das Convenções aplicáveis, a assistência na adequação da legislação nacional, o apoio na formação relacionada com as matérias das Convenções e a assistência com técnicos internacionais, de reconhecida competência. A experiência indica que a aquisição de equipamentos (como viaturas, botes pneumáticos ou lanchas, radares, rádios, computadores, etc) deve ser conduzida directamente pelo Governo, mediante concurso nacional ou internacional, conforme os montantes envolvidos. Igualmente, não faz sentido que uma Agência das Nações Unidas, mandatada para lidar com textos do direito internacional, se desdobre em actividades de construção civil, remodelando prisões.

GUINÉ-BISSAU NAÇÃO GLOBAL
O país caminha para a estabilidade. Mas o processo de estabilização pode fácilmente ser posto em causa por um vírus altamente nocivo: a manipulação étnica. Com efeito, a chamada “balantização” da política guineense vem favorecendo a desestabilização. Nino Vieira esteve relacionado com manipulações de origem étnica, ainda em 1985, quando um grupo de personalidades balantas foi fuzilado, com destaque para o comandante Paulo Correia; e Nino Vieira voltou a estar ligado ao assassinato de balantas, na guerra de 1998/1999. Kumba Yalá, o seu sucessor eleito, ficaria também suspeito de manipulações étnicas, no conflito que o opôs ao Brigadeiro Ansumane Mané.
A verdade é que uma população dividida em 20 a 30 grupos e sub-grupos étnicos é muito vulnerável à manipulação étnica; e na Guiné-Bissau constitui atractivo especial para manipuladores o facto da etnia balanta representar mais de 80% dos efectivos militares. Mas a guerra de libertação foi conduzida sem que a manipulação étnica tivesse tido expressão de maior. E isso aconteceu porque as diferentes nações da Guiné-Bissau souberam reunir-se numa “nação-global”, em torno de um objectivo—a independência. Hoje, finda uma era, de crises centradas na figura de um líder controverso, é tempo para que a “Guiné-Bissau Nação Global” se reúna de novo à volta de um objectivo: a estabilidade.
Na referida mesa-redonda de Genebra, em 2006, o país solicitou uma ajuda de 538 milhões de euros (cerca de 2-3 vezes a média do seu Orçamento, nos útimos três anos), sendo parte para a redução da pobreza e parte para a reforma do sector da segurança (cfr
http://www.worldbank.org/). A comunidade de doadores engajou apenas 262 milhões, para o Plano Estratégico Nacional para a Redução da Pobreza, adiando a questão da segurança. Mas mesmo esses 262 milhões tiveram, até 2008, um desembolso muito reduzido, a rondar os 20%, (cfr Embaixador Apolinário de Carvalho, in http://www.cplp.org/).
Estão agora reunidas as circunstâncias para que os desembolsos prossigam, no pressuposto de que os políticos e os militares guineenses demonstrem, com actos concretos, a sua determinação em corresponder aos desafios da estabilidade governativa, respeitando o sentido do voto popular, expresso democráticamente. A situação exige de alguns sectores políticos e militares guineenses uma mudança clara de comportamento. Hoje mais do que nunca, a aposta na divisão e na violência configura, em definitivo, uma aposta absolutamente desvantajosa para todos.

NOTAS FINAIS
Primeira: se até agora muita coisa falhou, com os mesmos interlocutores internacionais, importa alargar-se o leque e atrair novos interlocutores; segunda: o problema do país é essencialmente político, pelo que a abordagem política deve sobrepôr-se aos procedimentos burocráticos; terceira e parafraseando Amilcar Cabral: por maior que seja o envolvimento dos actores externos, a verdadeira solução para os problemas da Guiné-Bissau só pode ser encontrada pelos próprios guineenses.
Praia, Abril de 2009

Sem comentários: